domenica 16 maggio 2010

Italiana morta pelo marido virou mártir de um tipo de crime que desafia os séculos


Canelli é uma cidadezinha perto da aldeia de meu marido. A familia do meu marido conhecia a familia dos Pistone. Esta historia ainda hoje é paradigmatica

por Estadao
Santa Maria da mala

Sinistro. O baú de madeira com o corpo de Maria Féa chegou a embarcar no navio Massilia, mas chamou a atenção pelo cheiro fétido.
Dois serafins brancos anunciam, enfim, que é chegado o túmulo de Maria - mais precisamente Maria Mercedes Féa, que em vida nada tinha de feia. A moça de 21 anos, italiana de Canelli, ostentava graciosa opulência em seu 1,66 metro. Os cabelos amarelo-tostados eram cortados à la garçonne, no feitio dos anos 20. Sobre as mechas, chapéus Camille George. Sobre a cútis, pó de arroz Coty. Fazia oito meses que flanava no Brasil vinda de Buenos Aires, onde consumara casamento com um conterrâneo. Maria juntou sua primeira classe à segunda de Giuseppe Pistone ainda no navio que os levava à capital argentina. Tempos depois, por um triz não voltaria ela para a Europa, solla dentro de uma mala, desconjuntada e em estado de putrefação, ao lado de seus chapéus e estojos de maquiagem, vítima do marido assassino. Deselegantemente morta, virou santa do povo brasileiro. Santa Maria Féa, protetora do lar.

Maria foi vítima do crime da mala mais famoso do País. Nem todo fiel sabe disso. Há quase 82 anos uma legião de avisados e desavisados ajeita crisântemos, casinhas de madeira, órgãos humanos de cera, placas, velas, imagens de São Genaro (do qual era devota) e milheiros de Santo Expedito (a quem por certo recorreria) numa capela forrada de azulejos de cozinha no Cemitério da Filosofia, no bairro santista de Saboó. Vestidos de noiva - pagamento de promessa em troca do desencalhe - constatam a polivalência da santa, a quem o matrimônio não fez, exatamente, bem. "Tem moça que pede emprestado um vestido desses para casar", diz Marli de Paula Augusto, zeladora da capela desde 1996. "Só peço cuidado para não estragar porque outra pode ter precisão."

Embaixo de uma placa dourada com uma boca de cofre, rasgo que aceita colaborações da comunidade, jaz o poema de uma fiel. "Maria seu nome/daquela desconhecida/que foi acompanhada/por essa morte inesperada/arrancando sua vida/e também daquele que/com ela nascia." É uma menção discreta ao bebê que Maria expeliu post-mortem, uma menina que beirava os seis meses de gestação e que com ela está enterrada no Saboó. Por ter matado mãe e filha, o crime de Pistone perturbou mais o País que a versão similar de 1908, quando o comerciante Michel Trad socou seu sócio, Elias Farah, num baú que quase conseguiu arremessar ao mar de Santos. Pego em flagrante, Trad foi deportado para Beirute, sem mala nem cuia.

O italiano Pistone também se postou como cão de guarda sobre a encomenda que tencionava despachar para a França a bordo do navio Massilia. Até aquele momento, fizera peripécias. Depois de asfixiar a esposa num apartamento que os dois alugaram na Rua Conceição, atual Cásper Líbero, ele ainda esperou dois dias até acomodá-la, por assim dizer, dentro de um baú de madeira de 1 metro de comprimento por 50 centímetros de altura e largura, que mandou confeccionar na Avenida São João. Maria Féa já tinha as articulações enrijecidas. Foi preciso talhar-lhe parcialmente os joelhos com navalha na altura da patela, de forma que dobrassem sobre o ventre, e ainda luxar seu pescoço. Por cima, numa prateleira móvel, Pistone acumulou uma pilha de roupas, acessórios e objetos pessoais, de saia de casimira a pares de luvas, de sapatos a panos de prato, tencionando esconder o barulho que o corpo poderia fazer na movimentação. Como arremate, salpicou pó de arroz. O fedor era um problema à vista.

Não contente com a fechadura sólida, Pistone enlaçou a mala com três metros de corda de juta. Chamou então um caminhão para levar a carga até a Estação da Luz, de onde partiu para Santos. Lá contratou outro caminhoneiro para o transporte até o porto, onde o baú recebeu o rótulo da Companhia de Navegação Chargeurs Réunis, com destinação a Bordeaux e o nome fictício Ferrero Francesco manuscrito a lápis-tinta de traço roxo. O pó de arroz já tinha perdido a validade. Desde São Paulo era evidente o cheiro nauseabundo da mala. No porto, uma mala fétida com selo de terceira classe não parecia fazer grande diferença diante das bagagens de carne, salame e outros víveres dos quais os passageiros costumavam se servir durante a viagem.

Içada, porém, a mala deixou escorrer um líquido escuro, que chamou a atenção de quem trabalhava no armazém 14 da Docas. Quando Maria Féa foi literalmente descoberta, Pistone já comia o chão num táxi de volta a São Paulo. A polícia, no começo perdida a ponto de atribuir a autoria do crime ao exilado Trad, acabou por fazer todo o caminho contrário até chegar ao "bárbaro assassino", como a imprensa o tarjou. Acuado, Pistone confessou o crime. Mas a causa, a seu ver, era justíssima. Ao voltar para casa um pouco mais cedo, vira um homem no corredor do prédio onde moravam. O suspeito, associado à sua mulher em trajes ínfimos em plena hora do almoço, montava um cenário óbvio de adultério. Sem chance de agarrar o amante, Pistone atirou-se sobre a garganta de sua querida Mariuccia, tirando-lhe a vida num descontrole latino.

Quem prefere seguir a pista do dinheiro à da honra atribui a morte a um golpe que Pistone tencionava dar no primo que o empregava numa casa de salames. O italiano escreveu à mãe pedindo dinheiro para uma sociedade com o parente. Diante da negativa materna, sustentou a proposta de 150.000 liras de participação, o que teria levado Maria Féa a escrever à sogra explicando o imbróglio e perguntando o que podia esperar de um homem sem juízo nem capricho. Não chegou a postar a missiva. Ao descobrir a carta, Pistone a teria esganado ou sufocado com um travesseiro, algo que a perícia terminou por não confirmar.

Giuseppe Pistone, o jovem magricela de olhos azuis e calvície proeminente, foi condenado ao mesmo número de anos que carregava na época do crime: 31. Dezesseis anos depois, o presidente da República comutaria sua pena para 20 anos. A 3 de agosto de 1944, ele se viu em liberdade condicional. A definitiva viria em 5 de novembro de 1948. Do Carandiru seguiu para Taubaté, onde se empregou como zelador de um prédio.

Houve quem se apiedasse dele na prisão. João Carlos da Silva Telles, diretor do Instituto de Biotipologia, assim definiu o temperamento exemplar de Pistone: "É uma pessoa boa, tendo matado mais por ímpeto. Não é, como se comenta por aí, um sujeito mau. Essa fama lhe caiu mais por sensacionalismo da imprensa, que o mostrou maldosamente como o mais desalmado dos facínoras".

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